Reunidas pela primeira vez, as 65 crônicas de O espalhador de passarinhos permitem acompanhar a gestação de uma obra vigorosa, que só veio a ganhar a forma de livro tardiamente. Entre 1990 e 2009, período coberto por esta antologia, Humberto Werneck pouco a pouco se confirmou como um dos nossos grandes narradores em atividade. Depois de estrear em livro com uma reportagem biográfica sobre Chico Buarque (1989), Werneck lançou uma inesquecível história da diáspora dos escritores e jornalistas mineiros (O desatino da rapaziada, 1992); reenveredou pela ficção, com seus contos de juventude, retrabalhados na maturidade (Pequenos fantasmas, 2005); voltou à biografia, com O santo sujo – A vida de Jayme Ovalle (2008) e publicou até mesmo um divertido dicionário de lugares-comuns (O pai dos burros, 2009). Mas, paralelamente a esses trabalhos de fôlego, Werneck seguia se exercitando num outro tipo de arte, que costuma só se aninhar nas páginas da imprensa diária, semanal ou mensal: a crônica. São raros os cronistas que não encaram sua atividade apenas como um ganha-pão que lhes permite realizar atividades mais “nobres”. Raros também são aqueles que, como Werneck, procuram explorar as possiblidades narrativas e poéticas de um gênero mestiço, desprezado e muitas vezes mal compreendido até mesmo por quem o pratica – ou pensa praticar. Pois não basta ter uma coluna no jornal para ali desovar suas opiniões e rabugices, na certeza de estar se filiando à linhagem de Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Manuel Bandeira, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, que transformaram um gênero vira-lata na mais fina literatura. O que faz, então, com que textos escritos no calor da hora, para publicação no dia seguinte, tenham ficado por décadas na memória do leitor e na história da cultura brasileira? A resposta está, por exemplo, na crônica que dá título ao volume, “O espalhador de passarinhos”. Trata-se de um desses casos primorosos em que a sensibilidade do cronista lança o leitor onde quer – digamos, no meio do mato aonde Hugo, o pai de Humberto, ia em busca de passarinhos para fazer seu trabalho pioneiro e solitário de preservação da natureza nos anos 50. Ele não diz “curió”, mas “curiol”, observa o cronista-menino, todo ouvidos para o sotaque do pai, por sua vez todo ouvidos aos múltiplos sotaques das aves que vai espalhando pelo sertão de Minas. Até agora espalhadas (como os passarinhos do título?) ao longo de vinte anos em revistas e jornais, as crônicas de Werneck se encontram pela primeira vez no mesmo viveiro literário: esta edição, ilustrada pelo poeta, editor e artista gráfico Sebastião Nunes, da Dubolsinho, de Sabará (MG). A editora, conhecida por lançar autores de vanguarda como André Sant’Anna e o próprio Sebastião, é pioneira mais uma vez ao revelar – pelo menos em livro – o cronista de mão-cheia que é Humberto Werneck, que em alguns casos traz textos de quase vinte anos atrás, mas parece que foram escritos hoje de manhã. Terá sido do pai passarinheiro que o cronista urbano herdou esse ouvido tão apurado, ferramenta essencial em seu trabalho? Mas o ouvido do cronista não é só o do menino que cavouca na memória, às vezes uma só palavra, às vezes cenas completas, um aluvião inteiro perdido na infância. É preciso ouvido também para perceber o seu próprio tempo e observá-lo com humor e leveza, enxergar os personagens tão literários que nos cercam e volta e meia nem percebemos. Familiares, vizinhos, colegas de trabalho e amigos são os personagens de algumas das mais divertidas e emocionantes crônicas deste volume, como a “Gata Mansa”, a amiga que se deixou levar por um chamego na internet. Ou a filha de amigos queridos que acaba de nascer. A mania de falar e escrever difícil de Antonio Houaiss. Ou o dia em que o narrador acordou ouvindo o seu próprio anúncio fúnebre no rádio. Ou o borogodó ortográfico de Gisele Bündchen ameaçado pelo Novo Acordo. Ou a casa e as cartas brasileiras da poeta norte-americana Elizabeth Bishop. Tudo costurado com a agulha da ironia e a linha finíssima de um humor que se tornou a marca do estilo de Werneck, como se pode ver na pequena seleta de frases a seguir. O leitor de O espalhador de passarinhos tem em mãos 65 exemplos da língua literária brasileira em sua melhor forma, que devem ser lidos tal como foram escritos: com o compromisso único com as boas histórias.
“As rádios de Belo Horizonte, naquele tempo, punham no ar convites fúnebres — e foi assim que, certa manhã, tendo apagado em meio à programação musical da madrugada, acordei com a notícia de que Humberto Werneck havia morrido. Para quem se chama Humberto Werneck, não há pior maneira de começar o dia.” “Certa vez, seis laudas em letra miúda me tiraram o fôlego. Não, nada capaz de provocar uma ereção estética — sequer aquela outra, menos sutil, embora o conto pudesse ser descrito como a mais notável compactação que já se fez do Kama Sutra. Pega-e-faz-e-vira- e-mexe — não consigo imaginar atrevimento carnal que não tivesse sido ali contemplado por Jennifer O’Hara, pseudônimo de Geni alguma coisa.”***
“Imagine a moça entrando no consultório médico e dali saindo convertida em moço, sim, rapaz, com todos os atributos e penduricalhos da macheza. Agora imagine mais, a cena acontecendo quase um século atrás. Pois aconteceu mesmo, e numa conservadora Belo Horizonte que mal chegava aos vinte anos de existência.”
“Tem homem que não pode ver um rabo de saia? Pois aquele ali, em matéria de mulher, não pode ver um rabo de foguete.”
“Gosto de cemitérios. Não como residência, é claro, pelo menos não por um bom tempo ainda. Gosto. Acho até que vou acabar num deles. Se não me cremarem, naturalmente. Mas só depois de morto, por favor.”
“O que viu entrar no palco não foram noviças moderadamente rebeldes, como esperava, e sim um pelotão de moças espevitadas — e o mínimo que as criaturas fizeram foi levantar o hábito e sacudir as pernocas no mais profano cancã.”
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SOBRE O AUTOR Humberto Werneck nasceu em Belo Horizonte em 1945 e vive em São Paulo desde 1970. Como jornalista, começou no Suplemento Literário do Minas Gerais, sob o comando de Murilo Rubião, tendo trabalhado em seguida no Jornal da Tarde, Veja, Jornal da República, IstoÉ, Jornal do Brasil, Elle e Playboy, entre outras publicações. É cronista do jornal Brasil Econômico, escrevendo no caderno Outlook, que circula nos fins de semana. É autor de O santo sujo – A vida de Jayme Ovalle (Cosac Naify, 2008, prêmios APCA e Jabuti de Melhor Biografia), O desatino da rapaziada (Companhia das Letras, 1992); Chico Buarque –Tantas palavrasChico Buarque Letra e Música, 1989), Pequenos Fantasmas, contos (Noves Fora, 2005), e O Pai dos Burros – Dicionário de lugares-comuns e frases feitasBoa Companhia: Crônicas (Companhia das Letras, 2005) e Melhores Crônicas de Ivan Angelo (Global, 2007). (Companhia das Letras, 2006, edição revista e aumentada de (Arquipélago Editorial, 2009). Organizou e prefaciou as antologias Boa Companhia: Crônicas (Companhia das Letras, 2005) e Melhores Crônicas de Ivan Angelo (Global, 2007).
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