terça-feira, 25 de maio de 2010

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Como nos bons tempos de Rubem Braga

Antonio Gonçalves Filho - O Estado de São Paulo

Em O Espalhador de Passarinhos, o jornalista Humberto Werneck escreve como um mestre do gênero

É bom não confundir os títulos, até mesmo porque o mais recente é o ecologicamente correto O Espalhador de Passarinhos & Outras Crônicas, livro do escritor e jornalista Humberto Werneck que será lançado hoje, a partir das 18h30, na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915, tel. 3814-5811, Vila Madalena). O título original do livro de ensaios de Mário de Andrade, O Empalhador de Passarinhos (1944), jamais poderia ser aplicado à primeira das 65 crônicas que dá título ao livro de Werneck e coloca o mineiro entre seus pares mais celebrados do gênero ? o conterrâneo Paulo Mendes Campos (1922-1991), para citar outro ilustre jornalista e poeta de Belo Horizonte. Isso porque o "espalhador" de passarinhos não era chegado a um exercício de taxidemia. Hugo Werneck, o pai do autor, gostava mesmo era de preservar passarinhos vivos. É a sua história que o filho escolheu para abrir o livro.

Hugo Werneck morreu em 2008, aos 89 anos. Deixou 11 filhos e um sem-número de passarinhos espalhados pelo Triângulo Mineiro. Se você ouvir um pintassilgo cantando no Morro do Chapéu, perto de Belo Horizonte, pode apostar que seus ancestrais passaram pelas mãos do "espalhador" Hugo, que tinha alma passarinheira e o hábito de devolver à natureza frágeis cantores aprisionados em gaiolas. Volta e meia, um fiscal do Ibama invocava com seu Hugo, confundindo-o com um traficante de aves, conta o filho Humberto, mas o homem não desanimava. A exemplo do poeta Mário Quintana, sabia que aqueles que estão aí atravancando o caminho passarão. Eu passarinho, poderia dizer Hugo, um iluminado.

Como diz o filho, Deus está em toda parte ? mas pode ser que esteja um pouco mais em Minas, fonte de inspiração de muitas das 65 crônicas escritas entre 1990 e o ano passado. Werneck, que passou por vários gêneros, do ensaio literário (O Desatino da Rapaziada, 1992) à biografia (O Santo Sujo ? A Vida de Jayme Ovalle, 2009), decidiu que estava na hora de passar à crônica, cruzamento de literatura com jornalismo em que o olhar subjetivo do autor valoriza um acontecimento corriqueiro. "Minha geração foi criada lendo crônica", conta Werneck, que teve o estímulo da leitura dos mineiros da geração de 1945 e recebeu o batismo de fogo do autor de O Pirotécnico Zacarias, Murilo Rubião, seu mestre no jornalismo diário.

Werneck foi, entre outras coisas, redator-chefe da Playboy nos anos 1990. É dessa época uma história saborosa que ele conta em O Espalhador de Passarinhos, a da filha rebelde de Fidel Castro, Alina Fernández Revuelta, que fugiu de Cuba em 1993. Rompida com o pai e exilada, ela foi sondada para posar nua. Werneck foi atrás da ex-modelo, que saiu de Cuba "afilada como se posasse para Modigliani". Mas, aos 39 anos, ela já era uma matrona felliniana e, como não havia photoshop na época, era impossível tirar as polegadas a mais que sobravam em seu corpinho. Conclusão: as fotos foram destruídas na redação da revista e Alina ainda embolsou uma grana.

Entusiasmado com o gênero, Werneck prepara para a Companhia das Letras o segundo volume de Boa Companhia ? Crônicas, antologia de outros cronistas cujo primeiro volume, de 2005, teve várias reimpressões. E por que a crônica?. "É que em Minas já tem muito memorialista", responde o cronista, que vive em São Paulo.

[http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100512/not_imp550436,0.php]


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Humberto Werneck ensina a arte brasileira da conversa


por Claudio Leal (Terra Magazine)


A defunta, como vai? - perguntava Otto Lara Resende, em 1992, num momento de vazante literária. Nem tão cadavérica assim, a crônica perdia seus cultores, mas o leitor ainda seria capaz de se comprazer com a caminhada de Rubem Braga atrás de uma borboleta amarela, que roçou nos cabelos do cronista na esquina da Graça Aranha com Araújo Alegre, e aventurou-se pelo oitão da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Com mais de um sentido, a borboleta amarela sumiu das retinas de Rubem. Já a "defunta", numa intermitente catalepsia, costuma reabrir os olhos e desafiar os órfãos em volta do caixão.

O escritor Humberto Werneck é outro caçador de lepidópteros, muitos deles aprisionados nos casulos dos dicionários e da memória. As suas crônicas publicadas no jornal "Brasil Econômico", aos sábados, recuperam a importância das palavras e das pequenas histórias para o cotidiano. Parte dessa caça está no livro "O espalhador de passarinhos & outras crônicas" (Edições Dubolsinho), que será lançado nesta quarta-feira (12), a partir das 18h30, na Livraria da Vila da rua Fradique Coutinho, em São Paulo.

Werneck organizou a coletânea "Boa companhia" (Cia. das Letras, 2005), com 42 clássicos da desconversa, de Fernando Sabino a Antônio Maria. Mas faltava o seu palmo de prosa. Depois da biografia de Jayme Ovalle, devia-nos os vestígios de sua própria vida de repórter e escritor, diariamente observando as desgracinhas deste mundo com um humor que dá o bote antes que as ideias insinuem arabescos.

Quer exemplo? Na Flip 2008, Werneck compartilhou uma mesa literária com o jornalista Xico Sá, que buscava a palavra certeira para definir um ponto oculto feminino - como diria o Houaiss, "a base do púbis", entre a vulva e o você-sabe. "Qual é o nome?...", vasculhou Xico. "Períneo... Já estive lá", matou Humberto.

Quando a antena capta uma de suas tiradas, a tentação é seguir o conselho de Nelson Rodrigues, a respeito de Otto, e abrir uma promissora "Loja de Frases". Algumas das crônicas de "O espalhador de passarinhos" nascem do bom papo, o qual serve de laboratório para as teorias werneckianas mais representativas. Vem-me a dubiedade da "mulher interessante". A da vertigem de sobreloja é recomendável para etiquetar aquele escritor (ou nem tanto) que sente alturas literárias quando ainda nem passou da marquise do Edifício Itália. Vaidades, vaidades. O que poderia bivacar na conversa fiada ganha refinamento em "O marido da mulher pelada":

"Pode ser que você não esteja ligando o nome à coisa, mas na certa conhece essa modalidade de apoteose mental a que todos, uns mais, outros menos, estamos sujeitos. Imagine o camarada que, tendo subido um modesto lance de escadas, já se considera no topo do edifício. Ainda não fez jus ao inebriamento lisérgico de uma genuína vertigem de altura, pois mal chegou à sobreloja - mas já começa a gastar por conta"

Repórter e escritor se encontram na reinvenção de palavras e no tempo da narração, às vezes puxando o rabo-de-papel da morte: "Gosto de cemitérios. Não como residência, é claro, pelo menos não por um bom tempo ainda. Gosto. Acho até que vou acabar num deles. Se não me cremarem, naturalmente. Mas só depois de morto, por favor."

No texto derradeiro, Werneck relata o obscuro - e jamais publicado - ensaio fotográfico de Alina Fernández Revuelta para a Playboy. Filha rebelde do comandante Fidel Castro, ela fugiu de Cuba em 1993, disfarçada de perua espanhola. Residiu em Madri e depois se mudou para Columbus, na Geórgia (EUA). Redator-chefe da revista, Werneck a convenceu a posar nua. "Por que não? - ecoou Alina, subitamente animada."

As curvas irregulares, salpicadas de celulites, exigiram um ajustamento do corpo - sim, da boca. "Como a bruxa de Joãozinho e Maria, eu pediria a ela, de tempos em tempos, que mostrasse o dedinho - o qual, ao contrário do que ocorre na história, deveria apresentar-se cada vez mais delgado", conta. No jantar para acertar o contrato, Alina se apresentou "sem maquiagem, metida numa roupa suja e com cabelos cuja coloração sugeriu às visitantes 'uma água de salsicha'".

Sem pensar nos rumos da revolução, mas apenas na qualidade da vanguarda, a Playboy preferiu não publicar as fotos de J.R. Duran. Bem, esse é o detalhe. Deliciosa pacas é a forma da narrativa, num livro em que o relato jornalístico é ocasional. Outra maravilha de humor e concisão em "Antes que me esqueça":

"As duas amigas, já francamente outoniças, arrastavam as chinelinhas pelo parque em vacilante caminhada, uma amparada na outra, pulando de assunto em assunto ao sabor de suas memórias cada vez mais despovoadas."

"- Que fim levou Carmelita Moreira?

- Sou eu - informou a outra."

A defunta vai muito bem.


[extraído de http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4426886-EI6595,00-Humberto+Werneck+ensina+a+arte+brasileira+da+conversa.html ]