Crônicas De Humberto Werneck resgatam a melhor tradição do gênero
Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil
RIO - É o cronista que confessa: gosta de cemitérios. E, esperançoso, até acha que vai acabar num deles.
Chega a ser paradoxal que haja tanta observação de vida bem xeretada nas crônicas de Humberto Werneck ao lado de tanto tema funéreo. Mas, que fazer?, é a existência. Ou coisa de mineiro mesmo.
Abramos O espalhador de passarinhos & outras crônicas, recém-publicado pelas Edições Dubolsinho, de Sabará, e façamos, por alto, um levantamento. Logo no segundo texto, “O céu pode esperar”, o autor acorda e ouve no rádio a notícia “de que Humberto Werneck havia morrido”. Não satisfeito, vai ler a lápide negra do próprio túmulo e descobre que o inquilino do carneiro nº 143 da quadra 49 era um segundo-sargento da Polícia Militar. Ufa. Ele só não conta se jogou no bicho.
Você sabe o que é a morte macaca? Não? Então leia a página 149 que Humberto, pedindo licença a Pedro Nava, explica direitinho.
Outra: um de seus fantasmas inesquecíveis é o cadáver de Carmen Miranda: “Estava acondicionada num caixão de bronze e podia ser contemplada através no vidro (...) O que mais impressionava era o fato de que Carmen exibia uma caprichada maquiagem”.
Mais uma: Manuel, um de seus amigos cubanos, quer vender um jazigo. São tantas as qualidades do panteón, que a gente até suspeita: fica no cemitério de Colón, em Havana; é “confortável”; e tem seleta vizinhança: os escritores Alejo Carpentier, José Lezama Lima e Virgilio Piñera – três que valem por uma literatura inteira – e a concorrida tumba de doña Amélia Goire de la Hoz que, tendo morrido nos últimos dias de gestação, dizem que deu à luz debaixo da terra.
Ao entrevistar Gilberto Gil e ouvir dele uma frase que jamais irá esquecer – “Minha ambição, agora, é a boa morte” – o cronista aproveita para filosofar: “Ter vivido bem nos enche, lá no fim – venha como ele vier, na contagem regressiva sobre a cama ou no tranco de um enfarto, de um acidente – da tranquilidade de quem fechadas as últimas contas, pudesse dizer: 'Tudo bem, gente, chegou a hora de dar uma morridinha...'”.
Entre seus pares, Humberto deve ser o único a nutrir simpatias pela recente e esdrúxula reforma ortográfica. Afinal, ele tem um W e K no nome e está no seu direito de apontar o lado bom da coisa: “A reforma aboliu o trema, exceto nos nomes próprios – em vida de seus portadores, pelo menos.
Faz sentido. Não ficaria bem dar ao ser humano o mesmo tratamento que os estudiosos da língua reservaram à lingüiça. Já pensou a Gisele Bündchen sem essas duas coisinhas que ela tem em cima?”.
Pois aí está: ao lado da observação e reflexão acerca das miudezas do cotidiano, a graça de contar – que Humberto tem de sobra – é uma das principais características da chamada crônica brasileira, gênero único. É marcante em Rubem Braga, o maior, e na inconcebível fornada dos anos 50 e 60 (Paulo Mendes Campos, Antonio Maria, Fernando Sabino, Elsie Lessa, Clarice Lispector, José Carlos Oliveira, Nelson Rodrigues).
Humberto Werneck bebe na fonte para, com voz própria, continuá-la. O texto que dá título à antologia apresenta um personagem que, se não soubéssemos que é o pai do autor, poderia ter saído da costela do Velho Braga.
Muitas das histórias – a entrevista desastrada com Clarice, a vizinha búlgara em Paris, a vizinha erótica em São Paulo, o marido da pelada da Playboy – trazem o sem-verniz de Fernando Sabino, casos que se passaram com quem os narra, mesmo que precisem ser inventados. A crônica “A implosão do casal perfeito” é um blend de Antonio Maria e Nelson Rodrigues, resultando em Humberto puro, de truz. Brindemos, pois, que a linhagem está salva.
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