Humberto Werneck ensina a arte brasileira da conversa
por Claudio Leal (Terra Magazine)
A defunta, como vai? - perguntava Otto Lara Resende, em 1992, num momento de vazante literária. Nem tão cadavérica assim, a crônica perdia seus cultores, mas o leitor ainda seria capaz de se comprazer com a caminhada de Rubem Braga atrás de uma borboleta amarela, que roçou nos cabelos do cronista na esquina da Graça Aranha com Araújo Alegre, e aventurou-se pelo oitão da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Com mais de um sentido, a borboleta amarela sumiu das retinas de Rubem. Já a "defunta", numa intermitente catalepsia, costuma reabrir os olhos e desafiar os órfãos em volta do caixão.
O escritor Humberto Werneck é outro caçador de lepidópteros, muitos deles aprisionados nos casulos dos dicionários e da memória. As suas crônicas publicadas no jornal "Brasil Econômico", aos sábados, recuperam a importância das palavras e das pequenas histórias para o cotidiano. Parte dessa caça está no livro "O espalhador de passarinhos & outras crônicas" (Edições Dubolsinho), que será lançado nesta quarta-feira (12), a partir das 18h30, na Livraria da Vila da rua Fradique Coutinho, em São Paulo.
Werneck organizou a coletânea "Boa companhia" (Cia. das Letras, 2005), com 42 clássicos da desconversa, de Fernando Sabino a Antônio Maria. Mas faltava o seu palmo de prosa. Depois da biografia de Jayme Ovalle, devia-nos os vestígios de sua própria vida de repórter e escritor, diariamente observando as desgracinhas deste mundo com um humor que dá o bote antes que as ideias insinuem arabescos.
Quer exemplo? Na Flip 2008, Werneck compartilhou uma mesa literária com o jornalista Xico Sá, que buscava a palavra certeira para definir um ponto oculto feminino - como diria o Houaiss, "a base do púbis", entre a vulva e o você-sabe. "Qual é o nome?...", vasculhou Xico. "Períneo... Já estive lá", matou Humberto.
Quando a antena capta uma de suas tiradas, a tentação é seguir o conselho de Nelson Rodrigues, a respeito de Otto, e abrir uma promissora "Loja de Frases". Algumas das crônicas de "O espalhador de passarinhos" nascem do bom papo, o qual serve de laboratório para as teorias werneckianas mais representativas. Vem-me a dubiedade da "mulher interessante". A da vertigem de sobreloja é recomendável para etiquetar aquele escritor (ou nem tanto) que sente alturas literárias quando ainda nem passou da marquise do Edifício Itália. Vaidades, vaidades. O que poderia bivacar na conversa fiada ganha refinamento em "O marido da mulher pelada":
"Pode ser que você não esteja ligando o nome à coisa, mas na certa conhece essa modalidade de apoteose mental a que todos, uns mais, outros menos, estamos sujeitos. Imagine o camarada que, tendo subido um modesto lance de escadas, já se considera no topo do edifício. Ainda não fez jus ao inebriamento lisérgico de uma genuína vertigem de altura, pois mal chegou à sobreloja - mas já começa a gastar por conta"
Repórter e escritor se encontram na reinvenção de palavras e no tempo da narração, às vezes puxando o rabo-de-papel da morte: "Gosto de cemitérios. Não como residência, é claro, pelo menos não por um bom tempo ainda. Gosto. Acho até que vou acabar num deles. Se não me cremarem, naturalmente. Mas só depois de morto, por favor."
No texto derradeiro, Werneck relata o obscuro - e jamais publicado - ensaio fotográfico de Alina Fernández Revuelta para a Playboy. Filha rebelde do comandante Fidel Castro, ela fugiu de Cuba em 1993, disfarçada de perua espanhola. Residiu em Madri e depois se mudou para Columbus, na Geórgia (EUA). Redator-chefe da revista, Werneck a convenceu a posar nua. "Por que não? - ecoou Alina, subitamente animada."
As curvas irregulares, salpicadas de celulites, exigiram um ajustamento do corpo - sim, da boca. "Como a bruxa de Joãozinho e Maria, eu pediria a ela, de tempos em tempos, que mostrasse o dedinho - o qual, ao contrário do que ocorre na história, deveria apresentar-se cada vez mais delgado", conta. No jantar para acertar o contrato, Alina se apresentou "sem maquiagem, metida numa roupa suja e com cabelos cuja coloração sugeriu às visitantes 'uma água de salsicha'".
Sem pensar nos rumos da revolução, mas apenas na qualidade da vanguarda, a Playboy preferiu não publicar as fotos de J.R. Duran. Bem, esse é o detalhe. Deliciosa pacas é a forma da narrativa, num livro em que o relato jornalístico é ocasional. Outra maravilha de humor e concisão em "Antes que me esqueça":
"As duas amigas, já francamente outoniças, arrastavam as chinelinhas pelo parque em vacilante caminhada, uma amparada na outra, pulando de assunto em assunto ao sabor de suas memórias cada vez mais despovoadas."
"- Que fim levou Carmelita Moreira?
- Sou eu - informou a outra."
A defunta vai muito bem.
[extraído de http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4426886-EI6595,00-Humberto+Werneck+ensina+a+arte+brasileira+da+conversa.html ]
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